por Márcia Alves


 


Perante o consumidor, a imagem da revenda de combustíveis não é das melhores. Os casos recorrentes de postos que voltam a funcionar normalmente, um dia depois terem sido autuados e interditados pela fiscalização da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), prejudicam a reputação de toda a categoria. Para a sociedade, a questão é saber se esses foras da lei são, realmente, impunes ou se as autoridades é que são impotentes para combatê-los. No cerne do problema está o limite de atuação da ANP. Por lei, segundo a coordenadora-geral de fiscalização, Sheyla Oliveira, a agência é obrigada a aceitar o pedido de desinterdição de um posto flagrado vendendo combustível adulterado, depois que este “passar a dispor de produtos que atendam as especificações da ANP”.


 


Assim, se num dia o posto está vendendo gasolina adulterada, no outro poderá funcionar normalmente, desde que aquele produto não-conforme não esteja mais no tanque. Sheyla explicou que os postos autuados pela ANP respondem a processo administrativo e apenas perdem a autorização de funcionamento, conforme determina a Lei 9.847/99, no caso de segunda reincidência de um processo transitado em julgado. Embora tenha competência para fiscalizar o setor de combustíveis, falta à ANP o poder para mandar os adulteradores para a cadeia. Como agência reguladora, ela não tem poder de polícia. Mas, mesmo que tivesse, também não poderia, já que, pela legislação federal, adulterar combustíveis ainda não é considerado crime.


 


No Legislativo brasileiro há propostas para mudar esse quadro. Esse é o caso do PLS 223/02, de autoria do deputado Carlos Gomes Bezerra (PMDB-MT), da época em que ele ainda era senador, que passa a considerar a adulteração de combustíveis como crime contra a ordem econômica, prevendo a pena de um a cinco anos de detenção aos infratores. Em justificativa apresentada em plenária no início de agosto, Bezerra manifestou a esperança de que a pena de detenção possa inibir essa prática no mercado, já que, observa, “a legislação atual prevê apenas multa”.


 


São Paulo radicaliza o combate


Além de interditar com blocos de concreto os postos adulteradores e de arrancar as bombas de alguns, o governo paulista também aprovou leis que mandam infratores para a cadeia.


 


No âmbito estadual, entretanto, legislações mais severas têm sido aprovadas com o intuito de penalizar com mais rigor os adulteradores. Recentemente, o governador de São Paulo, José Serra, sancionou duas leis que prevêem tanto a apreensão do produto adulterado e a prisão aos infratores, quanto a aplicação de pesadas multas. A medida tem razão de ser no estado, que possui o maior número de postos no país e onde se verifica, proporcionalmente, a maioria dos casos de adulteração.


 


Tanto que o combate à esse tipo de crime em território paulista ganhou contornos de uma guerra, com a ação de uma força-tarefa que, ao lado da ANP e dos governos municipal e estadual, reúne órgãos de diversas instâncias, além do apoio do sindicato paulista da revenda (Sincopetro) e do sindicato das distribuidoras (Sindicom). Com isso, dificilmente um posto adulterador escapa de ser punido, pois, o grupo fiscaliza desde as irregularidades envolvendo a venda de combustível adulterado, até a falta de segurança da edificação, a falta de alvarás ou documentos municipais diversos e os problemas fiscais com a Fazenda.


 


Mas, enquanto as duas leis paulistas aguardam regulamentação para começarem a ser aplicadas, uma outra lei aprovada em 2005 continua sendo para a força-tarefa o instrumento mais eficaz contra os adulteradores. A Lei n° 11.929 criou normas mais rigorosas para o registro de empresas que pretendem atuar no setor de combustíveis e permitiu à fiscalização da Secretaria da Fazenda, no caso de infração, cassar a inscrição estadual dos estabelecimentos. Com os tanques e bombas lacrados, os estabelecimentos infratores são impedidos de funcionar e os sócios de exercer o mesmo ramo de atividade pelo prazo de cinco anos, contados da data de cassação. Desde 2005, a Secretaria da Fazenda cassou a eficácia da inscrição estadual de 401 postos de combustíveis.


 


Além disso, com base na Portaria CAT 58, o fisco paulista selecionou e notificou uma lista de 307 postos revendedores para providenciar uma documentação detalhada com o objetivo de renovar a inscrição estadual. Desse total, 76 inscrições estaduais foram cassadas por não atenderem os pré-requisitos necessários para o recadastramento, evidenciando para a Fazenda, a presença de “laranjas” no quadro societário dessas empresas. Para o procurador do Ministério Publico paulista, José Mario, são justamente os “laranjas” que impedem o fechamento definitivo dos postos adulteradores. “Alguns postos são multados pela ANP inúmeras vezes, mas, em todas rompem o lacre o voltam a funcionar, sem nunca serem penalizados porque estão em nome de laranjas”, afirma.


 


Foi por esse mesmo motivo que o governo paulista resolveu radicalizar e interditar os postos com blocos de concreto – chegou a utilizar 240 deles – e até a arrancar as bombas de combustíveis de postos adulteradores reincidentes, como fez com dois estabelecimentos da Praia Grande, município do litoral paulista, que tinham longo histórico de multas e interdições aplicadas há anos. Para o procurador José Mario, “as legislações não estão sendo suficientes para coibir as práticas ilícitas”. Por isso, não vê alternativa que não seja “arrancar as bombas”.


 


Procuradores paulistas se esforçam para cassar liminares


Além de levantar a situação e o histórico de irregularidades dos infratores, procuradores também contra-argumentam com juizes para derrubar as liminares.


 


Tão grave quanto se valer de “laranjas” para comercializar combustível adulterado é recorrer à justiça para se livrar das punições, por meio da obtenção de liminares. Verdade que não se pode afirmar que exista no país, atualmente, uma “indústria de liminares”, como no passado. Em São Paulo, por exemplo, segundo dados da Secretaria da Fazenda, as 85 liminares concedidas representam apenas cerca de 1% do total de postos do estado. Mas, têm aumentado. Em 2005, eram seis; em 2006, eram 60; e neste ano já são 85. A maioria concedida a postos que tiveram a inscrição estadual cassada e, portanto, estavam proibidos de funcionar. O chefe de Procuradoria Fiscal de São Paulo, Cleyton Eduardo Prado, garante que a maioria dessas liminares é obtida por postos que praticam a adulteração de combustíveis.


 


Por solicitação da Secretaria da Fazenda, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) tem se esforçado para agilizar o processo de cassação dessas liminares. Segundo Prado, uma petição bem preparada pelo advogado de um infrator, pode resultar no convencimento do juiz para a aceitação do pedido. Por isso, com a ajuda do fisco e de outros órgãos estaduais, os procuradores levantam o histórico de irregularidades dos infratores e contra-argumentam com os juizes as bases do processo. Muitas dessas liminares questionam a falta de ampla defesa – porque no caso de indício de adulteração a amostra-testemunha fica em poder de um delegado tributário e não do revendedor –, e também a competência da Receita para fechar um estabelecimento cuja irregularidade, eles alegam, não foi de cunho fiscal. Ambas as argumentações, segundo o procurador, “são frágeis”.


 


No caso da ampla defesa, ele afirma que as Portarias CAT fornecem todos os critérios para que o revendedor resguarde seu direito de defesa. Além disso, considera muito mais seguro que a amostra não fique em seu poder. “Podem suspeitar que o revendedor substituiu a prova pela amostra de um produto conforme”, explica. Quanto à competência da Receita, a lei permite a punição para os adulteradores por crime de sonegação fiscal. Segundo Prado, também há casos de infratores que solicitam liminares aos juizes para que a análise das amostras seja feita em outro laboratório que não o do Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), atualmente o único autorizado pela ANP para tal tarefa. Para ele, o objetivo dessas liminares é “dar mais tempo” aos adulteradores para tentarem se safar das punições. Nesses casos, a PGE tenta agilizar a cassação ou, quando não cabe recurso, espera o juiz decidir para então recorrer da sentença.


 


Por conta do trabalho dos procuradores, Prado acredita que a tendência será juizes cada vez mais inteirados da situação do setor de combustíveis e, portanto, muito mais propensos a negarem os recursos pedidos pelos infratores. É assim que pensa também o procurador José Mario, que vem realizando trabalho semelhante junto ao judiciário, por meio do MP, para cassar as liminares obtidas por distribuidoras. Segundo ele, das mais de 40 liminares obtidas por esses estabelecimentos, que tiveram a inscrição estadual cassada por não atender os requisitos do recadastramento determinado pela Portaria CAT 58, restaram pouco menos de cinco. Também nesses casos, ele conta que “petições bem feitas” convenciam os juizes a conceder as liminares. “Levantamos a situação fiscal desses estabelecimentos para provar aos juizes que muitos se tratavam de ‘laranjas’”.


 


Como funciona o processo administrativo na ANP


Toda vez que a fiscalização da ANP identifica alguma irregularidade em um posto ou distribuidora de combustíveis, lavra um auto de infração e, automaticamente, instaura um processo administrativo. O Decreto nº 2.953/99 e a Lei nº 9.784/99 facultam ao posto ou à distribuidora o direito de apresentar defesa por escrito, a qual é analisada pela agência, juntamente com os dados técnicos do processo. Os infratores também podem apresentar alegações finais.


 


Concluída essa fase, a decisão de primeira instância é elaborada e o estabelecimento é multado em valores que variam de R$ 5 mil à R$ 5 milhões. A ANP ainda pode decidir cancelar o registro do infrator ou suspender suas atividades. Para reverter a decisão, o posto ou a distribuidora pode recorrer ao diretor geral da ANP ou à justiça, que se acatar o recurso tornará o processo sub judice, aguardando decisão do tribunal.


 


As decisões judiciais são recebidas pela Procuradoria Geral da ANP, que orienta as áreas quanto ao cumprimento, quando favoráveis, ou recorrem das mesmas, quando desfavoráveis. Em 2006 e 2007, conforme a agência, os tribunais concederam 16 liminares aos postos. Também nesse período, foram decididos 6 mil processos em primeira instância na ANP, cujas multas vencidas e acumuladas totalizam mais de R$ 258 milhões.