por Cristiane Collich Sampaio


 


Há 100 anos, dois fatores impulsionaram o início da imigração japonesa para o Brasil: a necessidade de mão-de-obra para a próspera cultura brasileira de café e a incapacidade da economia japonesa em absorver uma população crescente. Assim, Japão e Brasil formalizaram um acordo migratório.


Obstáculos à comunicação, choque de culturas, algum preconceito, trabalho agrícola pesado, exploração e sofrimento marcaram os primeiros anos dos japoneses no Brasil. Mas, superando esses e outros reveses, imigrantes e descendentes conseguiram concretizar o sonho que sempre os guiou: construir uma vida melhor e – quem sabe? – poder retornar ao país do sol nascente.


Hoje muitos são empresários e sobrenomes como Sakamoto, Kimura, Katuiti, Ushikawa, Hashimoto, Uehara, Takauti, Kano, entre tantos outros, já não causam estranheza; os japoneses e seus costumes também se miscigenaram à cultura brasileira, mistura de tantos povos, notadamente no estado de São Paulo. Sua marca está presente na etnia, na gastronomia, sem contar os esportes, por exemplo, onde o Brasil se destaca mundialmente em modalidades como judô, karatê e taekondô.


Nesta reportagem, isseis, nisseis, sanseis e yonseis – imigrantes e suas sucessivas gerações – contam a história de suas famílias e de seu ingresso na revenda de combustíveis. Por meio deles a revista Posto de Observação presta homenagem a todos os que contribuíram para a construção dessa categoria econômica no país.


 



“Para viver, acho que o Brasil é melhor”


Como a maioria dos japoneses que vieram para o Brasil na onda migratória do início do século XX, também a família do revendedor Donato Yuji Kano tinha a expectativa de enriquecer e retornar à terra natal. Mas, como boa parte deles, acabou por fincar suas raízes aqui.


“Ryutaro Kano, meu avô, Rie, minha avó, e meu pai, Takatomi, chegaram com o Seattle Maru no dia 5 de agosto de 1918 com destino certo: as terras adquiridas nas proximidades de Registro (região Sul de São Paulo). Por dois anos plantaram arroz, mudando-se então para Santos (SP), onde permaneceram por seis anos, produzindo hortaliças”, conta Donato.


Mas, quando a situação econômica da família estava estável, todos, incluindo os irmãos brasileiros de Takatomi, contraíram “maleita” (malária). Preocupado com a incidência da doença na região, Ryutaro decidiu transferir-se para Mogi das Cruzes (SP), que tinha clima mais ameno e em pouco tempo o cultivo de hortaliças cedeu lugar à fruticultura, atividade a que um dos tios de Donato se dedica ainda hoje.


“Depois de concluir o curso primário tive de interromper meus estudos para ajudar meu pai na lavoura”, lembra o empresário, que, oito anos mais tarde, sem parar de trabalhar, cursou o “madureza” (supletivo) e, depois, engenharia mecânica na Faculdade de Mogi, profissão em que se formou. Por 26 anos trabalhou em multinacionais japonesas e viajou para o Japão, a serviço. “É um país rico, que vale a pena conhecer, mas acho que, apesar de todos os problemas, para viver, acho que o Brasil é melhor”, reflete.


“No final de 99, aproveitei o plano de desligamento voluntário oferecido pela última empresa em que trabalhei para realizar o antigo sonho de ter meu próprio negócio, e entrei para a revenda”, diz. Comprou um posto pequeno, tendo a esposa Célia Uchikawa como sócia no Auto Posto Uchikawa e Kano, sabendo que teria de fazer uma grande reforma: “a companhia ajudou, mas, mesmo assim, os anos de 2000 e 2001 foram difíceis, pois, por causa das obras, o posto ficou fechado e, quando reabriu, a reconquista da clientela foi lenta. Graças da Deus, aos poucos, a situação foi melhorando.”


Como a região de Mogi concentra muitos descendentes, mesmo sem restrições familiares à miscigenação, na geração de Donato a maior parte dos casamentos, como o dele, ocorreu entre isseis (imigrantes) e nisseis (primeira geração nascida no Brasil). Entre os costumes dos antepassados, Donato Kano preserva o da alimentação, embora confesse sua paixão por feijoada e macarrão, pratos que, segundo ele, saboreia com moderação, “por causa da idade”.


 



“De geração para geração”


“A chegada da família Kimura ao Brasil deu se com meu pai, Saichiro, em 1933. Ele se instalou na região de Cafelândia (SP), que apesar do nome, também tinha culturas de algodão, onde ele foi trabalhar”, revela Jorge Kazumi Kimura


Segundo ele, os primeiros anos foram muito difíceis, devido à dificuldade de comunicação, ao fato de ser estrangeiro, à falta de infra-estrutura nas lavouras: “ele, como outros imigrantes, levavam uma vida de semi-escravidão, onde os ganhos do plantio eram suficientes apenas para comer e se vestir.”


Na década de 40, a família transferiu-se para Rio Abaixo, no Vale do Paraíba, dedicando-se ao plantio de verduras e legumes, atividade que lhe abriu novos horizontes. Nos anos 50, os negócios foram diversificados e começaram a prosperar, elevando seu padrão de vida, com a aquisição de um bar, uma mercearia e caminhões para transportar a produção para vender no Rio de Janeiro.


“No final dessa década, compramos o posto de gasolina, o segundo a ser instalado em Suzano (SP), cidade em que já habitávamos”, declara o revendedor. “Assim ingressamos no ramo de combustíveis, com o Auto Posto Kimura, que dispunha de apenas duas bombas, uma de diesel e outra de gasolina.”


O grande boom comercial do estabelecimento, na sua visão, se deveu à reforma total, realizada em 1973, sob a bandeira Atlantic, quando passou a ter quatro bombas, dobrando sua capacidade: “na época da reinauguração, ocorrida em 1º de maio, chegávamos a vender 400 mil litros/mês, um ótimo volume para uma cidade pequena.”


“No comando do posto, iniciado com meus pais, já estamos na terceira geração e espero que continue assim, na família, passando de geração para geração”, planeja.


Diante dessa história, não restam dúvidas de que o objetivo que trouxe os Kimura ao Brasil, de ter uma vida melhor, foi alcançado.


 



“Abracei a causa”


Os antepassados de Roberto Uehara (uehara = vegetação crescente), atual presidente regional do Sincopetro em São José do Rio Preto (SP), chegaram ao Brasil em 10 de janeiro de 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, seguindo o exemplo de outros conterrâneos que, como eles, procuravam melhores condições de vida.


“Meu avô, Yoki Uehara e sua pequena família desembarcaram do navio Uakassamaro-Maru no porto de Santos. Ele, minha avó Ussa e meu pai, então com 11 anos, migraram da cidade de Naha, situada na Ilha de Okinawa, para ir trabalhar nas culturas de café da cidade de Palestina, na região de São José do Rio Preto. Até a geração de meu pai as famílias de origem japonesa eram muito unidas, fechadas, dedicadas à agricultura e ao cultivo das tradições. Porém, os filhos e netos estudaram e se distanciaram da agricultura, preferindo viver em cidades e abrir negócio próprio”, relata Roberto, que é formado em administração de empresas e cuja mãe é descendente de italianos.


Em 1989, logo após se casar, viajou ao Japão, como dekasseguy, acompanhado da esposa. Lá viveu e trabalhou por 11 anos e sete meses, período em que nasceu o filho Nikolas Keiychi (primogênito, em japonês). Antes de retornar, sondou o mercado para saber em que atividade aplicar seu ‘pé-de-meia’ e, influenciado pelo irmão que possuía um posto, acabou por adquirir dois postos Texaco na região.


“Antes o revendedor via o retorno do seu investimento e de seu trabalho, mas, naquela época, o setor estava passando por grandes mudanças, com muitas coisas ruins acontecendo. Associei-me ao Sincopetro em 2000 e, em meados de 2004, numa reunião emergencial em São José do Rio Preto, conheci o Zeca (José Alberto Paiva Gouveia, seu presidente) e ele me convidou para participar da entidade. Abracei a causa da revenda, mas a tarefa é estressante, pois resolvemos um problema hoje e amanhã aparecem 10 novos”, comenta.


Apesar disso, Uehara avalia que hoje o cenário melhorou: “as novas legislações paulistas, que tiveram a colaboração do Sincopetro, ajudaram muito os revendedores do estado e até do país, pois, se não fossem essas leis a situação estaria mais crítica do que está.”


 



“UNIÃO, TRABALHO E APOIO MÚTUO”


No dia 21 de novembro deste ano a Rede Vida completa seu 25º aniversário, demonstrando o que é possível conquistar com trabalho, seriedade e união. Atualmente com 21 sócios, todos nipo-brasileiros, a rede congrega 21 postos, entre independentes e de diferentes bandeiras.


Tudo começa em 1983, quando Helio Hiroshi Takauti e sua cunhada Helena adquirem, no bairro paulistano do Imirim, o Auto Posto Clima, de bandeira Shell, mais conhecido como Posto Lobão. Três anos depois, Paulo Juguy Takauti e os filhos Helio e João Hiroki se tornam proprietários do Vida Posto de Serviços, de bandeira BR, localizado na mesma região, que daria nome à futura rede. Conforme relata Hélio, que permanece no grupo até hoje, esta “se forma por acaso, quando um amigo, ao voltar do Japão com algum capital mas nenhuma experiência nesse ramo, se propôs em fazer uma parceria com os Takauti, e a sociedade acabou dando certo”.


Ele conta que seus avós paternos, Junki e Michiko, vieram da cidade de Kumamoto em 1914 e 1909, respectivamente, com 14 e três anos, e mais tarde se conheceram e casaram. Ao chegar a São Paulo, os Takauti foram para Promissão, trabalhar nas lavouras de café.


“À chegada, o sonho de um país considerado paraíso virou pesadelo. Além da dificuldade de comunicação, os primeiros anos foram marcados por muito sofrimento, pois as condições de vida eram muito precárias: a comida, além de ser muito diferente, era pouca; a casa era toda de madeira e coberta de sapé. Diante de todos esses problemas, os japoneses se mantinham unidos, organizados em grupos para tentar amenizar a situação, e acabaram por formar associações que existem até hoje”, diz Hélio. A história da Rede Vida não foge muito dessa regra.


De Promissão, o grupo segue para outras cidades até se fixar em Val Paraíso, onde a família Takauti abre uma sorveteria, que depois troca por um caminhão. E, assim, com transporte próprio, gasta um dia e meio numa viagem até São Paulo, estabelecendo-se no bairro do Imirim, onde vive até hoje.


“A rede deve seu crescimento à união, trabalho, apoio mútuo e determinação do grupo, sendo esta a maneira que encontramos para tentar sobreviver neste competitivo mercado. Os postos são administrados diretamente pelos sócios, propiciando atendimento de qualidade superior”, avalia seu fundador.


Quanto ao perfil dos proprietários, Takauti informa que são todos imigrantes ou descendentes – nisseis, sanseis e yonseis, ou seja, da primeira à quarta geração – e que a maioria trabalhou no Japão como dekaseguy: “cumpriam jornadas diárias de mais de 12 horas, permanecendo por muitos anos longe de suas famílias, com o único objetivo de ganhar dinheiro para realizar o sonho de ter um negócio próprio. Essa característica comum demonstra a obstinação e a seriedade dos membros”. A hierarquia e o respeito aos mais velhos é, segundo ele, a principal tradição preservada.