por Cristiane Collich Sampaio


 


O vácuo legal de quase quatro anos, provocado pela suspensão, em dezembro de 2005, dos efeitos da Portaria nº 14/96 do Departamento Nacional de Combustíveis (DNC), que regulamentava o então chamado posto de abastecimento de combustíveis (hoje ponto de abastecimento, PA), de forma alguma teve seus efeitos negativos revertidos pela publicação de nova regulamentação em 2007. O número desses estabelecimentos cresceu desordenadamente nesse período e continuou nesse curso, mesmo após a edição da Resolução nº 12 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em 22 de março de 2007, retificada pela Resolução nº 28, de setembro do mesmo ano, que estendeu o prazo para o cadastramento dos PAs até 30 de junho de 2008. A grande maioria, no entanto, ignorou essa determinação.


Destinados exclusivamente ao abastecimento próprio, de frotas de empresas, cooperativas, propriedades rurais etc., por serem considerados consumidores finais, esses agentes recebem combustíveis de distribuidoras e transportadores-revendedores-retalhistas (TRRs) com carga tributária inferior a que incide sobre os produtos destinados aos postos de revenda. Porém, grande parte dos PAs, desrespeitando proibição da ANP, vende combustíveis, irrestritamente, a quem quiser comprá-los, por preços menores aos dos praticados nos postos revendedores, transtornando o equilíbrio do mercado, por prática de concorrência desleal (e ilegal). Com isso, têm provocado o encerramento das atividades de empresas de revenda e a eliminação de um sem-número de postos de trabalho. E, mais: burlam a legislação trabalhista e as convenções profissionais específicas (Veja box.) e, ainda, atentam contra o meio ambiente e a segurança da população nas regiões em que estão instalados.


 



Os PAs funcionam à revelia de leis e normas de quaisquer naturezas, atentando contra o equilíbrio do mercado e os empregos e colocando em risco a sociedade e o meio ambiente. 


 


Na mira


Em agosto último, o sindicato paulista de revendedores (Sincopetro) notificou a ANP para que informasse o número total de PAs cadastrados no órgão, as providências a serem adotadas com relação aos não cadastrados e as medidas a serem aplicadas para evitar que distribuidoras e TRRs continuassem vendendo produtos aos PAs irregulares. Todavia, até o fechamento desta edição a ANP não havia se manifestado sobre o assunto.


Além dessa medida, em junho a entidade já havia encaminhado denúncias à Promotoria do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), a qual já instaurou inquérito para apurar o descumprimento da legislação ambiental por esses estabelecimentos no estado.


Pelo farto material fotográfico apresentado na denúncia, parece que os PAs se desenvolvem numa época remota, em que não existiam regras ambientais, de segurança ou de qualquer outra natureza. Tanques instalados em depósitos, oficinas ou coisa que o valha, em contêineres ou suportados por estruturas precárias, ao relento, sobre chão de terra batida ou com o piso danificado; abastecimentos realizados à beira-mar ou por meio de uma abertura no muro do estabelecimento, com mangueiras de dimensões muito maiores que as previstas nas normas técnicas, com emendas; poças de combustível derramado durante os abastecimentos e até mesmo flagrantes de entregas em domicílios podem ser observados nas imagens entregues ao MP-SP, que ilustram o fato de que não é de hoje que esses estabelecimentos funcionam à margem das leis, colocando em risco a segurança dos cidadãos e o meio ambiente.


O Sincopetro também propôs a criação de um grupo de trabalho sobre PAs (GT-PA) no interior da Câmara Ambiental do Comércio de Combustíveis da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb). O objetivo aqui é o tratamento isonômico de postos e PAs, com a viabilização do enquadramento destes últimos na legislação ambiental do estado, por meio da abertura de novo prazo para cadastramento e posterior licenciamento.


O GT-PA foi constituído em julho, mas ainda não tem uma proposta fechada. É integrado pela Cetesb, pelo Departamento de Controle do Uso de Imóveis da prefeitura paulistana (Contru), entidades da revenda do estado (entre as quais o Sincopetro) e sindicatos nacionais das distribuidoras e dos TRRs (Sindicom e SindTRR, respectivamente).


 



 “Esses empreendimentos não podem ficar à margem da legislação ambiental”.


 


Números oficiais X números reais


“Esses empreendimentos não podem ficar à margem da legislação ambiental”, declara Rodrigo Cunha, secretário executivo da Câmara Ambiental da Cetesb. Da mesma forma que os postos, até outubro de 2001 os PAs deveriam ter se cadastrado junto ao órgão e, a partir disso, adequado suas instalações de acordo com o que dispõe a Resolução nº 273 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) e a Resolução nº 05/01 da Secretaria do Meio Ambiente do estado.


Entretanto, diferentemente do que ocorreu com as revendas – que estimuladas e auxiliadas por seus sindicatos, se enquadraram nas novas determinações ambientais –, ainda hoje a maioria dos PAs continua na clandestinidade, do ponto de vista ambiental, mas não apenas.


“Quando começamos o cadastramento, esperávamos resposta satisfatória dos agentes. Isso ocorreu com os postos, mas não com os PAs; inicialmente não tínhamos referências para saber se o número de cadastrados era alto ou baixo”, comenta o secretário. Conforme os registros da Cetesb, o total é inferior a mil e refere-se especialmente a pontos instalados em indústrias, que são obrigadas a obter e a renovar periodicamente suas licenças ambientais.


Além disso, pelas últimas informações divulgadas pela ANP, apenas 1,6 mil haviam obtido registro. Os dados não estão mais disponíveis no site da agência, a qual, procurada, não se manifestou.


Este número é insignificante, pois, de acordo com as estimativas do Sindicom, no país há cerca de 70 mil PAs em funcionamento – o dobro do número de postos –, dos quais, entre 10 e 12 mil são grandes consumidores, abastecidos pelas distribuidoras associadas. Também o SindTRR cita números bastante altos, calculando que só no estado de São Paulo existam aproximadamente 20 mil desses estabelecimentos. No entanto, apenas cinco mil estariam obrigados a realizar o licenciamento, por possuírem tanques com capacidade superior a 15 mil litros. Mas a legislação referente aos pontos de abastecimento continua em vigor e determina que o cadastramento e a adequação às normas ambientais são obrigatórios para todos, fixando sanções e multas para os irregulares. Isso sem contar o que dispõe a resolução da ANP.


 


Cadê?


Para Rodrigo Cunha, se há riscos num posto revendedor, que tem no armazenamento, manuseio e comercialização de combustíveis sua atividade principal, estes são maiores numa indústria, garagem ou sítio, unidades não especializadas, em que a manipulação desses produtos é atividade secundária. Vale lembrar que além de poluentes, combustíveis – como o nome já diz – são substâncias inflamáveis e requerem cuidados especiais.


Para ele a grande preocupação é que a maioria dos PAs está instalada em empreendimentos que não estão contemplados na legislação estadual que prevê licenciamento ambiental.


Ou seja, há cerca de 20 mil estabelecimentos em operação no estado – 70 mil no país, é bom assinalar – e a grande parte sem qualquer tipo de controle, pois ninguém sabe onde estão, a não ser seus fornecedores, seus clientes e os postos que são diretamente lesados pela concorrência desleal da venda ilegal de combustíveis.


Segundo Cunha, o GT está trabalhando numa proposta – a ser apresentada ao plenário da Câmara Ambiental e, depois, submetida a Cetesb – para dar uma nova oportunidade aos PAs para regularizarem sua situação, por meio da abertura de novo prazo para cadastramento voluntário. E é possível que o processo seja simplificado, permitindo o registro por meio da Internet. “Espera-se que haja empenho das distribuidoras e dos TRRs na divulgação da necessidade do cadastramento entre os PAs, seus clientes”, afirma o representante do órgão paulista. Ele explica que nessa primeira tentativa, o processo se dará de forma amigável, já que o grupo espera contar com o auxílio dos fornecedores desses estabelecimentos irregulares. Ele imagina que a informação sobre a importância do cadastramento talvez não tenha chegado aos interessados, pois o assunto não está relacionado com suas atividades principais.


“A Cetesb nunca solicitou a divulgação da relação de clientes dessas empresas, pois as entidades já haviam sinalizado que não o fariam”, relata, mas adianta que se não houver êxito nessa primeira tentativa, já estão sendo avaliadas medidas no âmbito judicial para que forneçam essas informações, pois os PAs “são fontes potenciais de poluição e representam risco à sociedade”.


Rodrigo Cunha lamenta o fato de a Cetesb não ter contato mais estreito com os órgãos ambientais de outros estados para discutir o licenciamento ambiental, por meio de reuniões como a que ocorreu em maio de 2005, por iniciativa do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Encontros como aquele poderiam generalizar a discussão no Brasil e uniformizar ações e procedimentos para mapear as instalações.


Mas, voltando ao estado de São Paulo, a questão imediata é a elaboração de uma proposta consensual no GT-PA e sua aprovação rápida na Cetesb, enquanto se torce pela chegada das respostas da ANP e pelo andamento do inquérito que corre no Ministério Público.


 



Revendedores e trabalhadores unidos


 


Mas há mais. Luiz de Souza Arraes, presidente da federação dos frentistas do estado (Fepospetro) e secretário nacional da federação nacional da categoria (Fenepospetro). tem algumas informações adicionais. “Nenhum PA cumpre a legislação trabalhista; não pagam o piso da categoria, nem o adicional de periculosidade, e não cumprem a convenção coletiva dos frentistas”, afirma. Ele acrescenta que a nova versão da Norma Regulamentadora nº 20 (NR-20), do início de dezembro, é mais rigorosa no que tange aos fatores de risco para quem trabalha com produtos inflamáveis, exigindo a capacitação dos empregados, por meio de curso específico, e que, da mesma forma que a anterior, também é ignorada.


 “Sabemos que os PAs abastecem outros veículos, e não os da própria frota, e que vendem por preços inferiores aos do mercado. Por isso estão acabando com os postos de serviços, especialmente os de estrada e, com eles, os postos de trabalho”, revela. Ele cita como exemplo a Rodovia Rio-Bahia, em que cerca de 30% dos postos fecharam e que parte dos demais está sucateada, deixando os caminhoneiros sem ponto de apoio, “um perigo a mais na estrada”. Arraes também informa que um dos postos da Rodovia Raposo Tavares, em Osasco (SP), demitiu 20% dos funcionários de uma só vez, pois na região operam pelo menos 15 PAs, que vendem produtos para quem quiser comprar. O caso já foi denunciado ao MP e a ANP.


Além disso, o dirigente dos frentistas relata que hoje existe uma verdadeira rede nacional de PAs. Segundo ele, há um acordo entre transportadoras de vários pontos do país: um caminhão do Sul, por exemplo, ligado a uma transportadora, pode abastecer no PA de uma transportadora local, do Norte, e vice-versa. Os caminhões não precisam parar em postos, pois há PAs dessas empresas espalhados pelo Brasil.


“Se continuar assim, em cinco anos prevemos redução entre 35% e 45% do número de postos de trabalho na estrada”, declara.


 



 “Estão acabando com os postos de serviços, especialmente os de estrada e, com eles, os postos de trabalho”.