por Cristiane Collich Sampaio e Elaine Paganatto


 


Será que o dilema do “se fugir o bicho pega, se ficar o bicho come” sobre prós e contras na aceitação de cartões de crédito pelo comércio está com os dias contados? Por intermédio de convênio firmado entre o Banco Central do Brasil (BC), a Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça, e a Secretaria de Acompanhamento Econômico (Seae), do Ministério da Fazenda, foi elaborado um relatório sobre a indústria de cartões como meio de pagamento.


 


De acordo com o chefe do departamento de Operações Bancárias e de Sistema de Pagamentos do Banco Central, José Antônio Marciano, esse estudo possibilitou a detecção de problemas sérios nesse mercado. Entre estes, há fortes indícios de exercício de poder de mercado da Visanet e da Redecard – elas são responsáveis por 94% das transações e por 90% do volume financeiro das compras com cartões, que, em 2008, chegaram a R$ 375 bilhões; barreiras que impedem a entrada de novos agentes e maior competição; falta de transparência na forma e no valor dos preços praticados (tarifa de intercâmbio, taxa de desconto, anuidade etc.); e evidência de que proibir a cobrança de produtos com preços diferentes em função da forma de pagamento distorce o mercado e prejudica o consumidor, diminuindo seu poder de barganha.


 


Para Marciano, o fato de haver apenas duas grandes administradoras de cartões de crédito operando, não configura concentração de mercado. Porém ele salienta que “o importante é que as estruturas e as condutas existentes não sejam impeditivas à competição, e que, portanto, não prejudiquem comerciantes e consumidores que possuem cartões. Ou seja, o problema não é a concentração em si, mas os potenciais fatores que levam ao exercício abusivo de poder de mercado”.


 


O custo do cartão


Quanto às taxas e prazos de pagamento, que parecem estar totalmente fora da realidade para uma economia estável como a atual, José Marciano explica que “os dados do setor indicam que a taxa cobrada dos estabelecimentos comerciais variou pouco no período estudado, entre 2002 e 2007”.


 


No que se refere ao prazo de pagamento das compras aos estabelecimentos, percebeu-se que tal prática originava-se nos períodos de alta inflação e taxa básica de juros. “No entanto, a prática continua vigente mesmo agora que temos estabilidade de preços e taxas de juros bem mais baixas”, salienta.


 


Para o economista Fábio Pina, porta-voz da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), o Brasil está bem atrás dos outros países em relação ao cartão de crédito, pois “o prazo médio de recebimento pelo estabelecimento de uma venda realizada com cartão de crédito é de 30 dias, diferentemente do cenário internacional, onde este prazo é de dois dias em média”.


 


Para o representante do BC, de certa maneira, as condições atuais prejudicam diretamente o consumidor final, pois o fato de o estabelecimento receber 30 dias após a venda, que o faz arcar com o custo de oportunidade do dinheiro, aliado à existência da regra de não sobre-preço, aumenta os custos do estabelecimento que, em certos casos, acaba por repassá-los ao consumidor final.


 


O advogado Ricardo de Aquino Salles, da Carvalho de Aquino, Salles e Mesquita Filho Advogados, avalia que, em virtude do cenário econômico atual, proporcionalmente os custos para o comerciante são maiores hoje do que eram no passado: “embora, com inflação e juros mais baixos, o impacto representado pelo grande prazo para receber o pagamento seja menor, hoje a taxa mensal e o aluguel das máquinas têm peso muito maior sobre os custos do cartão”. Segundo ele, “é possível afirmar que o impacto desses custos sobre o valor das transações feitas com cartões de crédito é de aproximadamente 5%”.


 


No entanto, levando-se em consideração que a preferência por esse meio de pagamento saltou de 8,7% em 2000, para 21,4% em 2008, ele imagina que, se nada for feito, chegará um momento em que muitos comerciantes deixarão de aceitar cartões. Em contrapartida, ele vê como resultado dessa atitude “uma potencial perda de clientela”. Salles calcula que atualmente as perdas do comércio por não oferecer a opção de pagamento por cartão é de 1/5 das vendas. “Isso significa que 20% dos consumidores preferem pagar com cartão de crédito e que, nessas vendas, o comerciante tem custo adicional de 5%”, estima. Por esse cálculo, segundo ele, ainda vale a pena aceitar essa forma de pagamento, em virtude da redução do risco de inadimplência nos pagamentos com cheque. “Mas é preciso verificar se esse risco paga a despesa do cartão”, pondera.


 


O que dizer, então, de postos de combustíveis, como alguns da Rede Duque, de São Paulo, em que os pagamentos com cartão chegam a corresponder a 90% de todas as vendas realizadas e os custos com essas operações atingem 20% da margem bruta obtida com essas vendas? Salles avalia que como o custo adicional de 5% sobre as vendas com cartão é quase a totalidade da margem da revenda, “a queda nesse custo poderá elevar a rentabilidade do posto revendedor e até possibilitar a redução dos preços finais ao consumidor, assegurando a mesma rentabilidade ao empresário”.


 


Preço diferenciado?


Para atenuar esses custos, a saída talvez esteja na liberação do comerciante para praticar preços diferenciados para pagamento em dinheiro e com cartão, o que não é permitido hoje.


 


Marciano explica que o relatório evidenciou a possibilidade de o comerciante vir a praticar preços diferenciados como forma de aumentar seu poder de negociação frente aos credenciadores. Isto porque a regra do preço uniforme facilita a imposição de altas taxas de desconto pelo credenciador ao reduzir o poder de barganha do comerciante. Essas taxas de desconto oneram este último, que repassa esses custos para mercadorias e serviços oferecidos.


 


O economista da Fecomercio faz coro com o representante do BC. Para Pina, o fim dessa proibição não só estimularia a venda à vista e em dinheiro como geraria um forte estímulo para que as administradoras de cartão oferecessem melhores condições e taxas de juro e de desconto menores. “Os clientes usariam o cartão apenas se tivessem mais vantagens e o comércio apenas se pagasse menos pelos serviços”, constata.


 


Porém, essa opinião não é unânime. De acordo com informações divulgadas na mídia, a Receita Federal parece não ver a medida com bons olhos, por acreditar que incentivaria a informalidade e não traria a competitividade esperada. Já o advogado Ricardo Salles, que também é diretor do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac), teme que a diferenciação seja muito mal recebida pelos consumidores, acreditando que “o papel de vilão ficará com os comerciantes”.


 


Por outro lado, sua avaliação sobre as propostas por ele alinhavadas no estudo do BC, SDE-MJ e Seae-MF é bastante positiva. Ele considera “importantíssima a unificação dos terminais, dado que garantirá homogeneidade de acesso aos serviços de diferentes operadoras, independentemente de sua localização, assim como o fim da exclusividade, que não apenas é possível como traria resultados imediatos para esse mercado, como o aumento da competição”. Quanto ao compartilhamento dos ganhos tecnológicos, Salles acredita ser isso algo difícil de monitorar, mas que “poderia ocorrer, por força de maior concorrência, por exemplo”. Para o advogado, a regulação desse mercado é uma questão basicamente mercadológica. “Hoje as operadoras impõem os prazos de pagamento e as taxas aos comerciantes, mas, com maior competição, esses valores tendem a cair, pois o comerciante e o consumidor terão liberdade para escolher as condições que mais lhes interessarem”, exemplifica, acrescentando que “o Governo deve estimular a concorrência, para que o próprio mercado se regule, sem a imposição de regras”.


 


 



Administradoras aceitam mudanças


Quando esta reportagem estava sendo elaborada, o jornal Folha de São Paulo, de 7 de junho de 2009, divulgou o estudo elaborado pelos órgão federais. De acordo com a matéria, uma das medidas, apontadas, que ainda estava em discussão seria a de obrigar a Visanet e a Redecard a uma cisão, de modo a provocar a venda dos negócios de captura, compensação e liquidação e deixando-as apenas com o credenciamento de comerciantes, algo que desagrada demais as duas.


 


Para a SDE-MJ, essa medida drástica seria, de fato, a melhor solução. Já o BC preferiria forçá-las a abrir mão da exclusividade concedida pelas bandeiras, o que permitiria a entrada de novos agentes de tecnologia no mercado.  Como se pode perceber, há dúvidas dentro do próprio Governo quanto às providências a serem tomadas. E para que essas medidas sejam efetivamente implementadas, serão necessárias alterações em leis e portarias que regulam o mercado de cartões no país.


 


O que causa surpresa neste momento é a aparente disposição – nunca vista antes, vale destacar – demonstrada pelas duas empresas em promoverem elas mesmas mudanças que possibilitem o aumento da concorrência no setor.


 


De acordo com a reportagem, as duas empresas tinham até o final de junho para apresentar seus contrapontos ao trabalho do Governo e oferecer sugestões. Porém, caso o Governo julgue essas soluções ineficientes poderá promover investigação para verificar possível formação de cartel e abuso de poder econômico.


 


É aguardar para ver como vai acabar essa história.


 



“Venda com cartão não é venda à vista”


O proprietário do Auto Posto Visão, localizado no Belém, na Zona Leste da capital paulista, Hélio Pirani Fiorin, tem na ponta do lápis o custo que a aceitação dos cartões de débito e crédito representa para o seu negócio. Do volume mensal de vendas, quase 60% são realizadas por esse meio de pagamento. Além de pagar taxas entre 2,5% e 3% sobre cada venda, o posto ainda arca com o pagamento de R$ 80,00 pelo aluguel do terminal de cada bandeira e mais R$ 130,00 pelo terminal sem fio.


 


Nas contas de Fiorin, os cartões consomem aproximadamente 20% da margem de lucro bruto do posto. Para chegar a esse percentual, ele considerou o exemplo hipotético de um posto que venda 150 mil litros por mês, ao preço de R$ 2,40 o litro e que pratique margem de lucro de R$ 0,30. A taxa de 2,5% sobre o valor de cada litro representa neste caso R$ 0,06, que, multiplicado pelo volume vendido no mês, corresponde a R$ 9 mil, ou 20% do total faturado. “Temos de lutar para conquistar condições semelhantes à de outros países”.


 


Fiorin também se queixa da proibição na diferenciação de preço na venda com cartão. “A lei define que é uma venda à vista. Mas como pode ser, se recebemos somente depois de 30 dias?”, questiona. Ele observa que grandes redes varejistas fazem diferenciação de preços nas vendas pela Internet. “As autoridades não vêem isso?”. (Márcia Alves)


 



 “Nas mãos das administradoras”


Boa parte das vendas dos nove postos da Rede Arinella, em São Paulo, é realizada para frotas de empresas. Mas a venda não é direta. Entre o posto e a empresas existe um terceiro elemento: as administradoras dos cartões de frotas. São elas que ditam quanto o posto deve pagar de taxas e em quanto tempo serão reembolsados. “O custo é caríssimo, maior até que os das operadoras tradicionais de cartões”, diz o proprietário Felipe Arinella. Segundo ele, a taxa média é de 3% e o prazo para ressarcimento em torno de 40 dias.


 


Outra parte considerável das vendas, cerca de 60%, também é feita com cartões de débito e crédito. Como a maioria dos revendedores, Felipe reclama das altas taxas e dos longos prazos de reembolso.  Porém, ele se sente aliviado por não ter de recorrer a bancos. “Sei do caso de postos que além de todos os custos do cartão ainda pagam mais 3% aos bancos para antecipar o recebimento”.


 


Para ele, o ideal seria que se pudesse cobrar mais nas vendas com cartão. “Estamos nas mãos das operadoras, pois, se deixarmos de aceitar esse meio de pagamento as vendas despencam”, acredita.  (MA)


 



O lucro maior é dos cartões


Embora a Rede Duque, com 35 postos instalados em São Paulo, disponha de cartão de desconto para seus clientes, o Duque Card, mais de 80% de suas vendas estão concentradas em cartões de crédito e débito. Luiz Carlos Rivera, gerente da rede, salienta que em alguns postos na Zona Sul o percentual chega a 90%. Tamanho volume representa um custo bastante alto para a rede, que por suas contas chegam a 4% sobre cada venda.


 


Ele calculou ainda o valor que as administradoras de cartões abocanham da margem de lucro de postos. Supondo que o custo de compra na distribuidora para um determinado posto seja de R$ 2,1117 por litro e que o preço de venda seja de R$ 2,399, a margem então será de R$ 0,2873. Assim, 4% de R$ 2,399 (preço de venda), que corresponde a R$ 0,09, deve ser subtraído da margem bruta. “Os cartões ficam com a parte do leão”, ressalta Rivera. (MA)