por Cristiane Collich Sampaio


 


Hoje há um verdadeiro movimento nacional disposto a sanear o mercado de combustíveis automotivos e recolocá-lo no rumo do desenvolvimento sadio, em benefício do consumidor, do Estado e da grande parte dos agentes que atuam nesse setor.


A partir do início a desregulamentação, ocorrida logo após da promulgação da Constituição Federal de 1988, muitas irregularidades, em diferentes âmbitos, foram registradas nesse meio.


Quem não se lembra da ‘indústria de liminares’, que permitia a distribuidoras e postos a venda de combustíveis sem o pagamento de impostos, impedindo a concorrência equilibrada. Ou o subterfúgio do ‘álcool molhado’, em que o anidro, que integra a composição da gasolina C e tem menor carga tributária, era reidratado e chegava ao consumidor como álcool hidratado, com preços muito abaixo do produto vendido com todos os impostos. Ou, ainda, a mistura de solventes na gasolina e de metanol no álcool, entre tantas outras artimanhas, cujo único objetivo era o de obter lucro fácil, a qualquer custo.


Mais de duas décadas se passaram desde então e, pouco a pouco, o poder público, com a colaboração de entidades dos segmentos envolvidos, conseguiram eliminar paulatinamente essas distorções ou minimizá-las. A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) é hoje mais atuante, graças, em parte, a uma série de convênios firmados com órgãos estaduais e municipais. O Judiciário adotou nova postura diante de fraudes fiscais e de qualidade envolvendo combustíveis. Os sistemas de fiscalização foram aperfeiçoados e ampliados, com a criação de forças-tarefa abrangendo diferentes órgãos. Novas leis federais foram criadas – como o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que em setembro completou 20 anos –, enquanto outras foram atualizadas, como as que regem a tributação do setor. Os estados se municiaram de legislações mais severas para punir adulteradores e sonegadores; exemplos disso são os dispositivos legais, adotados no estado de São Paulo, pela Secretaria da Fazenda (Sefaz), que cassam a inscrição estadual e instituem o perdimento dos produtos ‘batizados’.


Ao lado dos órgãos oficiais, também entidades do setor, como o sindicato paulista dos revendedores (Sincopetro) e o sindicato nacional das distribuidoras tradicionais (Sindicom), moveram campanhas de combate às fraudes nos combustíveis, colaborando com informações sobre condutas ilícitas do mercado e com sugestões sobre como reprimi-las.


 


Estamos de olho


 


Nesse processo de saneamento, as distribuidoras, individualmente, têm procurado fazer sua parte, ao desenvolver programas de qualidade e ao punir judicialmente, com severidade, parceiros desleais. A Petrobras Distribuidora (BR) declara ter sido a primeira a lançar um programa para verificar a qualidade dos combustíveis comercializados nos postos que ostentam sua bandeira, o Sistema de Garantia de Qualidade da Gasolina e do Óleo Diesel, em 1994. Dois anos depois, com o nome de De Olho no Combustível (DOC), foi implantado nas principais capitais e rapidamente se espalhou pelo país. Por meio dele, a empresa monitora sua rede de postos, realizando testes periódicos para verificar a conformidade dos combustíveis de acordo com as especificações da ANP e itens como a origem dos combustíveis comercializados, por meio das três últimas notas fiscais de aquisição de produtos e do LMC; e onde aplicável, dos resultados do processo de marcação; e a existência do kit completo para testes dos produtos, entre outros. São certificados os postos que – após várias visitas de um dos 57 laboratórios móveis de qualidade (LMQs) que circulam hoje pelos postos da bandeira no país – atendem a todos os requisitos. De acordo com informações da distribuidora, hoje, quase 100% dos postos da rede estão credenciados pelo programa DOC, que é condição para a participação em programas como o Controle Total de Frotas (CTF), a comercialização de produtos Premium e o credenciamento no Cartão Petrobras.


Essa estratégia, que não deixa de ser um apelo de marketing junto ao consumidor, acabou por se mostrar extremamente eficaz para separar o joio do trigo na rede. Conforme informações da BR, quando há evidências de adulteração no combustível, a companhia lacra o tanque e aciona o terminal ou a base de distribuição para que seja feita a retirada do produto para reprocessamento, enquanto toma as medidas administrativas cabíveis. Entre estas, notificação imediata do posto e comunicação da irregularidade à ANP, à secretaria de Fazenda (Sefaz) e ao Procon do estado. Na notificação ao posto, a BR determina ao revendedor a adoção de rápidas providências para a descaracterização do ponto de vendas. Caso tais providências não sejam tomadas, ela recorre à justiça. Posteriormente, o contrato com o estabelecimento é rescindido, inclusive pela via judicial, se e quando necessário.


 


O teste de DNA


 


Procedimentos semelhantes também são adotados pela Shell, tanto diante de fraudes relacionadas à qualidade dos combustíveis, quanto com relação à venda de produtos de outra distribuidora. O programa de qualidade DNA da Shell, lançado em 2000 para a gasolina e em 2003 para o diesel, permite saber se os produtos encontrados nos tanques dos postos que trabalham sob a bandeira estão dentro das especificações oficiais e, também, por meio dos marcadores existentes nos produtos Shell, se há mistura com combustíveis de outra procedência e em quais porcentagens. A distribuidora também coloca à disposição do consumidor o telefone 0800-7281616 para encaminhar denúncias, que são rapidamente verificadas por um dos veículos que integram o programa.


“Já na primeira vez que o posto é flagrado comercializando combustível adulterado, a Shell pode solicitar ao Judiciário a retirada da marca, que é o bem mais importante da empresa, e, ainda, a rescisão contratual”, afirma José Maurílio Dolce, gerente de Operações de Vendas de São Paulo e Interior da Shell. Todavia, salienta que “é sempre respeitado o direito de defesa e a história do revendedor”, já que podem ocorrer situações em que o comprometimento da qualidade dos produtos não se deve a má-fé do empresário.


Em paralelo, o gerente de Operações de Vendas de São Paulo e Grande São Paulo, Frederico Santos, acrescenta que, “além da ação para a retirada da marca Shell do posto, por uso indevido e quebra de contrato, dependendo do instrumento assinado, é solicitada a reintegração de posse dos equipamentos, o que envolve multas e pagamento de indenização à companhia”. Quando o flagrante é feito pela fiscalização da ANP, por exemplo, a companhia segue essas mesmas etapas, porém, segundo ele, “é até mais dura com o revendedor”.


Vale lembrar que não há conflito entre as ações ajuizadas pelas distribuidoras e outras medidas administrativas que possam ser promovidas pelos agentes públicos. Instauração de processo administrativo pela ANP, para a cassação do registro do posto, e de processo para a cassação da inscrição estadual do estabelecimento e o perdimento do produto contaminado, pela Sefaz e Procon do estado, são medidas previstas para casos de adulteração, o que também não impede que o revendedor seja denunciado pelo Ministério Público, por exemplo, por desrespeito ao CDC. Todos esses processos podem tramitar concomitantemente.


 


Menos ruim


 


Federico diz que, embora o tempo necessário para a decisão do Judiciário seja variável de uma região para outra, de um modo geral, talvez por pressão da opinião pública, o prazo para a tramitação dos processos vem se reduzindo ano a ano. “Em meados de 2000 a conclusão se arrastava por até três anos. Agora as decisões são mais céleres. Em São Paulo há registro de decisão judicial que demorou menos de 60 dias”, relata.


“Felizmente são poucos os casos na rede Shell de São Paulo”, informa Maurílio: “em 2010, até agora, retiramos a marca Shell de quatro postos, por meio de recursos judiciais.” E lembra a fase negra da ‘indústria de liminares’ concedidas para não pagamento do ICMS e outros tributos, que foi de meados de 1990 a 2002, em que o mercado ficou caótico: “hoje o Judiciário está mais familiarizado com o setor.”


Atualmente, as fraudes mais comuns estão na adulteração propriamente dita – mais concentrada no maior volume de etanol adicionado à gasolina – e na sonegação fiscal em algum elo da cadeia de comercialização.


Ambos os executivos da Shell em São Paulo têm a mesma opinião quanto à evolução do mercado. Para eles, o combate à adulteração e à sonegação fiscal tem progredido bastante nos últimos anos. Maurílio comenta que “as autoridades vêm sendo sensíveis ao problema e investido no aumento da fiscalização, legislação mais rigorosa e punição mais rápida contra os infratores, com destaque para a secretaria de fazenda estadual”.


Mas, apesar de estar melhor do que há 10 anos, o mercado ainda está longe do estágio ideal. Impunidade, legislações dúbias, sistema tributário complicado e ineficaz, em que o ICMS tem alíquotas diferenciadas por produto e por estado, são questões que ainda concorrem para comprometer a saúde do setor, na visão de Frederico Santos.


“Desejamos que o revendedor idôneo, que é maioria, prevaleça sobre o fraudulento”, declara. Procurando colaborar para isso, em sintonia com o Sindicom, a Shell defende alterações no modelo tributário vigente para o etanol. A proposta enfatiza a necessidade de concentrar no produtor – no caso, usinas e destilarias de álcool – o recolhimento dos tributos de toda a cadeia de produção e comercialização, como forma de evitar a sonegação em algum elo da cadeia, como ocorre hoje, prejudicando o equilíbrio do mercado. Porém, a medida não pode ser adotada por um estado, isoladamente; deve ter abrangência nacional, determinada por lei federal ou pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Nesse aspecto a BR, que também faz parte do Sindicom, entende que a melhoria do mercado ocorrerá com fiscalização e controle eficaz, concomitantemente com a desoneração fiscal.


A equipe de reportagem da Posto de Observação também consultou outras distribuidoras, como a Ipiranga e a ALE, que não quiseram se manifestar sobre o assunto.