No setor de combustíveis, quem nunca ouviu
falar de distribuidoras “barriga-de-aluguel”, de álcool molhado, de venda de
etanol hidratado diretamente aos postos, de sonegação de impostos, de
adulteração, lavagem de dinheiro? E quanto à punição exemplar de envolvidos?

A história se repete. Após curtos períodos
de calmaria, em que o mercado de revenda de combustíveis parece entrar nos
eixos, graças a forças-tarefas de fiscalização, a poeira assenta, não se ouve
mais falar de eventuais envolvidos, e, novamente, as irregularidades voltam a
marcar presença, com mais disposição.

Ainda que esse cenário seja nacional, o
mercado paulista, dado suas dimensões, continua sendo a principal vítima. A
guerra de preços, que prejudica os empresários idôneos e dilapida o erário
público, corre solta atualmente. Mas essa é apenas a ponta do iceberg, é a
evidência dos crimes que permeiam a cadeia de comercialização dos combustíveis,
da formulação até a revenda, e que, alimentados pela impunidade, enriquecem
verdadeiras quadrilhas.

Esse contexto foi amplamente esmiuçado por
Luiz Alberto Segalla Bevilacqua, promotor de Justiça do Ministério Público do
Estado de São Paulo (MP-SP) e integrante do Grupo de Atuação Especial de
Combate ao Crime Organizado, na seção Ponto de Vista do Anuário 2013 do
sindicato nacional das distribuidoras (Sindicom). Além de detalhar os esquemas
fraudulentos, “dá nome aos bois” quando aborda o papel do Estado, da justiça e
de todas as instâncias de fiscalização envolvidas.

 

Críticas
severas

 

No artigo, ele destaca, com veemência, a
ação nefasta das distribuidoras “barriga-de-aluguel”, constituídas por sócios
“laranjas” e sem capital, que de forma fraudulenta, por meio de notas fiscais (até
mesmo eletrônicas) “ideologicamente falsas”, dão aparência legal às vendas
diretas de usinas a postos, o que é ilegal, “barateando a mercadoria a ponto de
tornar impossível a livre e competitiva concorrência de preços e gerando
impagável sonegação aos cofres públicos”.

Para se ter uma ideia desses preços
predatórios, basta citar o levantamento de preços efetuado pelo Sincopetro na
última semana de julho, em que diante de preços médios da ordem de R$
1,74/litro do etanol hidratado nas bombas da capital, existiam postos
praticando o preço de irrisórios R$ 1,49/litro. “O grande problema é que, aos
olhos do consumidor, o revendedor honesto passa por ladrão, enquanto que o
posto que revende etanol clandestino, comercializado por essas quadrilhas,
passa por bonzinho, por vender o produto mais barato”, declara o presidente da
entidade, José alberto Paiva Gouveia.

Para Luiz Alberto Bevilacqua, esses fatos
não podem ser encarados pelos órgãos de fiscalização – de todos os níveis e esferas
de competência – como simples dívida tributária dessas distribuidoras, sanável
por meio de execução fiscal, pois não se trata de mero passivo tributário, que
raramente alcança o bolso do infrator. Parte dos delitos está enquadrada no
Código Penal e, como no caso da formação de quadrilha, prevê severas penas aos
infratores; o posto que recebe o etanol irregular pode responder por receptação
qualificada.

Essa impunidade, a seu ver, vem estimulando
o crescimento do rombo fiscal, “que vem acompanhado da corrupção de agentes
públicos, da concorrência desleal, dos crimes contra a relação de consumo e da
lavagem de dinheiro, prejudicando a economia, afugentando os bons empresários,
manchando a imagem do país perante a ordem econômica internacional” (basta lembrar
a saída, relativamente recente, do Brasil de diversas companhias
internacionais, como Esso, Agip e Texaco).

Nesse aspecto, o promotor diz que basta o
aprofundamento das investigações e da ação conjunta dos órgãos competentes para
detectar “a existência de uma organização criminosa que vem sendo premiada com
lucros exorbitantes”. Para ele “deve-se constituir estruturada atuação conjunta
entre as receitas, ministério público e polícias civil, federal e rodoviária,
com instauração de Procedimentos Investigatórios Criminais (PICs), com
propositura de ações penais a altura do mal causado à sociedade e incluindo
todos os delitos que obrigatoriamente se caracterizam com o mencionado esquema
de “barriga de aluguel”.

 

Maçãs
podres

 

Embora grave, gerando perdas estimadas em
R$ 2 bilhões por ano aos cofres públicos e grandes problemas para empresas de
revenda e de distribuição, esse não é o único delito a afetar o mercado de
combustíveis.

Num passado não muito distante, os postos
bandeira branca acabaram por ser mal vistos no mercado, por conta de denúncias
de adulteração e de aquisição de etanol direto de usinas e pela campanha das
companhias em favor da qualidade garantida pelas marcas tradicionais. Mas nem
todos praticavam esses delitos.

Por outro lado, alguns postos independentes
passaram a ser beneficiados com preços menores por distribuidoras interessadas
em agregar os estabelecimentos à sua rede, em fechar contratos de exclusividade
com sua marca. Porém, como lembra Paiva Gouveia, nesse afã de ampliar seu market share por meio do abandeiramento
de postos bandeira branca, maçãs podres foram para dentro do cesto e,
sorrateiramente, continuaram com suas práticas ilícitas, sob as barbas de uma
bandeira conceituada, contaminando nichos de mercado.

Por conta dessa prática e, principalmente,
da da “barriga-de-aluguel” no etanol, a guerra de preços vem ganhando terreno
e, com ela, outras estratégias concorrenciais que resvalam no direito
econômico.

 

Ingerência
e verticalização

 

As distribuidoras tradicionais, pressionadas
pelos preços predatórios e sem querer perder espaço no bolo das vendas,
resolveram entrar na briga pelo mercado. Para isso, em algumas cidades e nichos
locais, selecionam alguns parceiros da revenda que, também sufocados pela
concorrência desleal, aceitam propostas, no mínimo indecorosas: concordam em
praticar os preços finais por elas estipulados, mediante a aquisição dos
produtos por preços fixos, também mais baixos, mesmo com o achatamento de sua
margem, de forma a recuperarem ou, pelo menos, não perderem mais vendas. No
interior do estado de São Paulo essa prática já se tornou usual, prejudicando
grande número de revendedores idôneos que, por um motivo ou por outro, se
recusam a participar dessa guerra.

Com certeza, os postos beneficiados pelo
acordo com distribuidoras manterão certo movimento. Resta saber se as margens
praticadas serão suficientes para cobrir os custos do estabelecimento, pois,
parece que alguns se esquecem de que maiores vendas não significam,
necessariamente, maiores lucros. (Faça as contas e, se tiver dúvidas, basta
consultar a Planilha Gerencial desenvolvida pelo Sincopetro e disponível para
seus associados.)

E, mais: o que fazer perante o consumidor
quando as distribuidoras resolverem elevar seus preços de venda? Certamente,
além de quedas nas vendas, haverá reclamações de clientes e muitas denúncias
recaindo sobre postos, por aumentos abusivos nos preços.

Mas os problemas não param nesse patamar. Parece
que inovações tecnológicas, que poderiam facilitar a vida dos empresários da
revenda, vão leva-los a dar um tiro no próprio pé. Os novos sistemas de
pagamento desenvolvidos, com pré-pagamento do combustível pelo consumidor à
companhia pelo site, para posterior
abastecimento nos postos – que não recebem pela venda no ato da compra –, já
foi implantado pela Ipiranga, que está sendo seguida de perto pela Shell e pela
Petrobras Distribuidora.

Estes são dois exemplos da ingerência das
distribuidoras na gestão do posto revendedor, atitude condenada na Constituição
Federal de 1988, contrária à verticalização das empresas nesse setor. No
primeiro caso, as companhias determinam o preço de compra e de venda dos
produtos nos postos, o que significa tratar o empresário como seu mero
preposto. No segundo, intervém diretamente no fluxo de caixa dos
estabelecimentos. Em outros termos, recebe antecipadamente e paga depois pelo
serviço que o posto lhe prestou de comercializar o combustível da sua marca.
Isso também vai contra o direito comercial, de relação entre duas empresas
distintas. Ou não?























































“Para onde vai esse mercado?”, pergunta
Paiva Gouveia. “Todo mundo sabe o que se passa no setor de combustíveis, quem
são os desonestos e onde estão eles, inclusive os órgãos de fiscalização, mas
pouco é feito para sanear definitivamente o mercado”, complementa. “É uma pena
que os resultados das forças-tarefas integradas pela ANP, Fazenda estadual e
diversos outros órgãos de fiscalização, de diferentes campos, sejam tão
limitados. Isso se dá, em parte pela falta de fiscais que permitam ação mais
intensiva, em parte pela ação da justiça, vagarosa, que se perde no meio de
tantas leis concorrentes e não parece ser capaz de enquadrar os malfeitores em
todos os delitos e crimes de que são responsáveis e de julgá-los nas esferas
civil e penal, aplicando-lhes as mais severas penalidades, como recomendado
pelo promotor Luiz Alberto Bevilacqua”, conclui.