Por Denise de Almeida


 


 


Nos últimos dois meses, o consumidor brasileiro assistiu, estarrecido, à série de reportagens realizadas pela Rede Globo, que denunciam o submundo do mercado de combustíveis. Foram, no total, 15 matérias que mostraram à população fraudes sofisticadas de adulteração. Em entrevista exclusiva à revista Posto de Observação, o repórter César Tralli conta como se deu a apuração dos fatos.


 


Gasolina de procedência espúria, mistura de solvente e álcool muito acima do permitido por lei, distribuidoras clandestinas, propinas a policiais, postos clonados e toda a sorte de irregularidades que vêm acontecendo no mercado dos combustíveis foram os protagonistas de uma série de reportagens produzida pela TV Globo e levada ao ar nos últimos dois meses.


Nos bastidores da notícia, um árduo trabalho da equipe do núcleo de jornalismo investigativo da emissora, que teve o repórter César Tralli à frente das investigações, apurando fatos, buscando fontes e fazendo as denúncias.


Em entrevista exclusiva à revista Posto de Observação, Tralli revela que, assim como toda a população brasileira, se surpreendeu com a quantidade de fraudes que ocorrem no setor. “Nossa idéia inicial era realizar uma matéria a partir das muitas reclamações que recebemos diariamente na redação, de motoristas que têm problemas com o carro em função de gasolina de má qualidade”, explica. “Mas, na medida em que fomos nos aprofundando nas questões do setor, a situação foi tomando vulto e acabou se transformando numa série de reportagens, onde abordamos quase todos os aspectos da adulteração”.


 


Muito álcool na gasolina


 


Tralli conta que as primeiras matérias denunciavam o que era mais visível, ou seja, o combustível adulterado vendido ao consumidor. Mas, para não fazer simplesmente só mais uma reportagem sobre o assunto, ouvindo a ANP, a polícia ou o Ministério Público, a equipe teve a idéia de montar um carro teste. Era uma Kombi com tanque falso, insufilmada, que transportava um laboratório e um químico da PUC-Campinas, especializado em combustíveis.


Com base em informações fornecidas por entidades e profissionais do setor, a equipe da Globo mapeou os postos mais suspeitos de São Paulo e foi para as ruas. “Abastecíamos, colhíamos o combustível e, virando a esquina, dentro da própria Kombi, fazíamos o teste do álcool na gasolina, etiquetando frascos e gravando tudo, para ter as comprovações”, lembra o jornalista. O resultado, segundo ele, foi assustador: a quantidade de álcool na gasolina nestes postos é muito superior ao permitido por lei, chegando, em muitos casos, a 65% do produto.


Essa constatação acabou motivando a reportagem a querer saber mais sobre a gasolina. E, mais uma vez, o resultado foi surpreendente: 70% das amostras colhidas nestes postos era, na verdade, uma composição de solventes. “Quer dizer, o consumidor compra um litro de gasolina, mas leva 65% de álcool e o resto de uma mistura de solvente barato, que nem gasolina é”, indigna-se.


A partir disso, Tralli conta que a equipe foi aprofundando as investigações e que estas resultaram em novas e instigantes reportagens. “Na seqüência”, recorda, “mostramos uma distribuidora clandestina que entregava solvente para os postos. Fizemos campana por duas semanas, até que um dia, antes de chegar ao posto, o caminhão parou em uma delegacia. Foi uma situação super suspeita de propina”, acusa, relatando que a equipe, com sua Kombi, acompanhou tudo e depois foi abastecer no posto. Como era de se esperar, os testes acusaram combustível com 60% de álcool e o resto de solvente.


 


Crime organizado


 


Daí para se chegar ao crime organizado foi um pulo. As descobertas da emissora comprovaram que há quadrilhas especializadas que migraram de outras áreas do crime para o setor dos combustíveis. Tralli acredita que são donos de desmanche, ladrões de carga e receptadores, assaltantes de banco, ladrões de carro e até policiais corruptos, que acabaram indo para esse mercado para lavar dinheiro ou para adulterar e ganhar dinheiro fácil. Ou para os dois.


E por quê migraram? “Acho que tem a ver com a facilidade de se comercializar combustível adulterado, e pelo fato de a punição para esse tipo de delito ser muito branda” revela. O jornalista assegura que não há contravenção, hoje em dia, no país, que movimente mais dinheiro que adulteração de combustíveis. “Dinheiro fácil, facilidade nas operações e muita impunidade: é a receita perfeita para o criminoso”, diz.


 


Autoridades e fiscalização


 


Quando as matérias começaram a ganhar repercussão junto a opinião pública, com o recebimento de mais de 70 e-mails por dia na redação, o caminho natural, segundo Tralli, foi cobrar a fiscalização e as autoridades.


“Durante as investigações, conversamos muito com ANP, Secretaria de Fazenda e Ministério Público”, conta. E a justificativa para uma ação tão pouco efetiva, segundo apurou, tem a ver especialmente com a falta de estrutura. A ANP possui 14 fiscais para atender os 9 mil postos do estado; a Secretaria de Fazenda conta com 500 homens para fiscalizar todos os estabelecimentos comerciais. E o Ministério Público está atolado de trabalho e não há nenhuma ação que contemple especificamente o setor dos combustíveis.


Ainda assim, ele se diz confiante na atuação dessas instituições. “Pela primeira vez, estamos assistindo a uma mobilização efetiva dos órgãos governamentais e de fiscalização; uma ação integrada, onde todas as partes estão conversando entre si”, garante, referindo-se aos convênios firmados pela ANP, que auferem poder aos agentes da prefeitura da capital e da Secretaria de Fazenda para fiscalizar, identificar e, se necessário, fechar postos por adulteração.


No que tange o Ministério Público, a constatação de que as medidas administrativas são muito brandas para a ousadia dos criminosos provocou a reação do órgão, que trabalha agora para que medidas drásticas sejam adotadas junto aos estabelecimentos descumpridores da lei. A idéia, segundo apurou Tralli, é arrancar as bombas e até a estrutura física, solicitando o seqüestro do posto e obstruindo efetivamente a sua entrada com blocos de concreto.


 


Mobilização


 


Tralli esclarece que não sabe até que ponto a série de reportagens contribuiu para a mobilização dos órgãos de fiscalização, mas acha que, diante dessa indignação social e conseqüente pressão da sociedade, esse é o momento ideal para se moralizar o setor. “A opinião pública está sensível, a imprensa está de olho e o assunto está nas ruas”, avalia. “Mas, para que isso aconteça de fato é preciso que a imprensa continue nessa campanha e que as autoridades não fiquem só no calor das emoções”, pondera.


Para ele, o trabalho tem que ser efetivo inclusive entre representantes de postos, distribuidoras e consumidores. “Pois, já que não têm o poder de polícia, podem contribuir como já vêm fazendo há anos: fornecendo informações, esclarecendo a opinião pública e, sobretudo, denunciando o mau policial, o fiscal corrupto, a gasolina de má qualidade”.


 


Classe política


 


Falando em mobilização, Tralli finaliza dizendo que acha que a classe política podia se mobilizar mais pelo setor. Ele lembra que há pelo menos dois projetos de lei na Assembléia Legislativa – o do perdimento (que, em caso de fraude, tira todo o combustível do posto, incinera, e o revendedor perde o direito de ser o fiel depositário ou de resgatar o combustível depois) e o da presunção (que prevê uma taxação violenta em cima de multa de ICMS, e permite a venda dos ativos do posto para pagar as multas) – que são extremamente favoráveis para a sociedade, já que também visam a moralização do setor, mas que estão parados. “Sem dúvida, um bom tema para uma nova reportagem”, conclui.


 


César Tralli


O repórter investigativo


 


César Tralli é mestre em Ciências Políticas (PUC-SP) e bacharel em Jornalismo (Cásper Líbero-SP). Repórter há duas décadas, atuou em revistas, rádio, jornais e trabalha na Globo há 14 anos.


Atualmente, é repórter especial na área de investigação e apresentador do SPTV, participando de grandes coberturas e ajudando a desvendar escândalos nacionais de corrupção, como os do Juiz Nicolau dos Santos Neto, a prisão de Paulo Maluf e do filho, de Law Kim Chong, do banqueiro Edemar Cid Ferreira, casos envolvendo a Justiça, como a operação Anaconda, a máfia do Apito em campeonatos de futebol e do Sindicato dos Motoristas de Ônibus em São Paulo, a atuação do crime organizado dentro e fora das cadeias e casos clássicos de corrupção nas esferas do poder público.


Tralli ganhou prêmio Embratel de Jornalismo na categoria televisão pelos casos de corrupção envolvendo o ex-prefeito Paulo Maluf; Prêmio Comunique-se como melhor repórter de vídeo do país; e Grande Prêmio Rede Globo de Televisão, pelas reportagens sobre a máfia dos motoristas e a prisão Law.